quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Bravura

Reuniu os cacos de si mesmo no vigor do último abraço. Ela nem percebeu. Nem percebeu que aquele beijo na testa, a seguir, em meio a uma multidão infindável de olhares alheios à existência de ambos, era uma despedida. O coração dele, desde aquela hora fatídica, era uma gaiola para sempre aberta. Deixou-a partir de si, suavemente. Sem o saber, ela estava livre.
Ele nem teve tempo de olhar aqueles olhos negros lacustres que mesmerizaram a luz dos seus, opacos, desde o primeiro – e único - momento incrustado na memória que jamais se apagará. Encontraram-se no meio do salão de danças, assim, acidentalmente. Ele, rumando célere em direção às obrigações, ela, num vagar incerto entre a Lua e uma saudade distante. Súbito, por segundos não colidiram como trens desgovernados em que os passageiros levavam consigo somente a bagagem dos afetos destruídos, os amores esmaecidos como telas antigas e pálidas que nunca chegaram a ser dignamente conhecidas. Ela estacou, entre assustada e inquieta, num gesto natural de quem despenca do espaço para a realidade, abandonando momentaneamente a imagem de sua lembrança recente – que não era ele. Ele percebeu seu modo vacilante. Olhou-a, ternamente. Deu dois passos em sua direção. O tempo parou. Vertiginosamente, tudo se movia. Menos eles, perdidos nas órbitas um do outro, quais dois planetas trágicos.
Ele estendeu-lhe a mão. Ela respondeu, num gesto precário e amedrontado. Aproximou-se mais, sorvendo o olor suave de seu suor frio. Sentiu seus cabelos perto, perto demais. Havia um tom verde discreto em seu olhar, nas pálpebras, como o vestido dela na primeira vez que a viu, compondo um perfil suave e clássico. Seu coração – o dele – egoísta, tremia. Queria desmanchar-se em sangue e revolta. Respeitando-o, porém, ele não deixou. Reprimiu-o, com a delicadeza de um pai, sussurrando: “Espere...!”. O coração agitou-se, entre obediente e irritado. Assim como seus braços e pernas, seus pulmões descompassados, suas bolsas lacrimais sob censura. Aceitaram, resignados, o que ele ia fazer. Era inevitável.
Ele passou o braço direito delicadamente em redor dos seus ombros. Ao aproximar-se dela e de seu rosto rubro, horrorizados com o que estava por vir, as partículas aéreas, as pessoas, as estrelas cadentes e longínquas, os meninos da rua largando seus brinquedos, todos, sem exceção, se aproximaram para ver, lentamente, sentindo cada qual os próprios membros pesados, como no imo de um pesadelo em que, inutimente, tenta-se acudir alguém. Alguns, dando-se conta da loucura iminente, ainda tentaram demovê-lo, aos gritos. À toa tentavam atalhá-lo, impedindo que concretizasse o ato fatal. Em vão. Tudo foi em vão.
Ele lhe falou ao ouvido, quase em infra-som: “Você está bem?”. Ela meneou a cabeça, positivamente, ainda encabulada, os olhos num indisfarçável lamento.
Então, ele reuniu os cacos de si mesmo no vigor do último abraço. Ela nem percebeu. Nem percebeu que aquele beijo na testa, a seguir, em meio a uma multidão de olhares outra vez alheios à existência de ambos, era uma despedida. O coração dele, desde aquela hora fatídica, era uma gaiola para sempre aberta. Deixou-a partir de si, suavemente. Sem o saber, ela estava livre.

Para sempre.