sábado, janeiro 27, 2007

Catarse (ou Elogio da Indiferença)


O menino matou a menina. Com a tranqüilidade de quem masca um chiclete e o cospe fora. Quando viu, já o tinha feito. Não queria que ela ocupasse lugar em sua sala de estar, por isso a mandou para o porão em que coleciona seus mortos. Ela é mais um. E ele está com o coração dilacerado. Mas, que importa? Pior é ter a confiança traída. Por isso, ele não sente remorso. Só raiva. Não suporta traidores. Não consegue conviver com eles. É um verdugo de coração duro e vazio.
Mais tarde, indo em direção ao sótão, socará até cair de cansaço o velho saco de areia em que se exercita depois de cada assassinato. Esmurrá-lo-á com toda a sua força, arrebentando as suas costuras de tanto bater. Esfolará seus dedos até sentir o sangue pintar o plástico do saco e o chão gelado embaixo dos seus pés. Depois, banhado em suor fétido e com o rosto em brasa, jogar-se-á à toa no chão, como um garoto desesperançado das vielas de Bagdá, chorando, em meio a mais uma e corriqueira explosão, como a querer estancar a própria vida, no concerto sem fim de sua desventura. O menino odeia ser ingênuo. E foi, mais uma vez. E isso ele não podia tolerar.
Já o posso ver, em seguida, todo comportado, cabelinhos úmidos do recém tomado banho tépido que relaxou seus músculos cansados, sentadinho na escada, de camisa listrada horizontalmente em azul e branco, meias brancas e sapatinhos pretos brilhantes, engraxados pelo pai zeloso. Nas mãos, um livreto inocente quanto inspirador: “Alice no País das Maravilhas”.


E nunca mais se viu o sorriso do Gato.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Procurando Emprego?

Minha contribuição abalizada para você que, neste alvissareiro 2007, passará pelos processos seletivos empresariais, sempre marcados pela clareza, simplicidade, lógica e bom senso:


Desapego

“Vou deixar, dentro de mim, todas as coisas desvanecerem e perderem o sentido mesquinho que têm. Vou andar mais livre e ser menos disponível a gente específica. Estarei disponível à vida. Serei, quanto puder, onipresente, sem ser visto. Estarei nas lembranças de cada qual, mas nunca mais tão presente quanto hoje. Não fisicamente.
Não decorarei nomes. Nem de lugar, nem de pessoas, nem de nada. Renegarei, com todas as forças de minha alma triste, a prodigiosa memória que arrasto, vida a fora, pois minha memória é apenas solidão. Vomitarei, para bem longe de mim, todas as minhas crenças, aliviando meu estômago de todo esse nojo. Relegarei ao crepúsculo toda minha identidade, que não significa nada.
Descalçarei minhas sandálias, tirarei minha camisa e andarei ao Sol, trôpego, ridículo e anêmico, na esperança de que Deus me encontre. Nunca mais voltarei aqui, amigo. Adeus.”
Foi tudo o que ele me disse. Virou-me as costas e saiu. Até agora acompanho, no espelho que guardo aqui dentro, seu vulto triste, uma mortalha sombria carregando o peso colossal da incompreensão nas costas, contrastando em tudo com a estuante manhã, lá fora, e com a praia dourada, estrado concedido por Ele aos seus pés rachados e chumbados num nada aberrante.
É estranho, foi como profecia. Ele está aqui, mas não está. Nunca mais. Não do mesmo jeito.

terça-feira, janeiro 02, 2007