quinta-feira, janeiro 15, 2009

Resto e Descuido

"Isso aqui é um depósito dos restos. Às vezes, vem só resto, às vezes, vem também descuido. Resto e descuido." (Estamira)


Minha memória é um depósito de restos. Emergem do calor da minha fornalha neuronal restos, muitas vezes. Mas, às vezes, vem também descuido. Resto e descuido. Resíduos de pensamentos sempiternamente iguais, que busco alterar, demolindo as idéias prontas e renovando meu repertório de respostas. Importante aprender a crescer.

Vislumbro a montanha de resíduos tóxicos que acumulei em meu aterro íntimo e, no momento, dedico-me a realizar a separação dos materiais. Há muito que renovar. Muito a imaginar. Muito a criar. Por isso, estou tentando um ângulo perceptivo diferente. Não quero acumular mais lixo.

Estou criando tanques próprios para cada corpo e remetê-los-ei à usina que comecei a construir e estará pronta, em breve. Lá, espero que eles recebam o tratamento adequado e, assim, eu possa retirar de sua intimidade elementos realmente novos, porque arranjados ineditamente.

Certa feita, li um dramaturgo soteropolitano escrever que muitos afetos são como restos de LSD na corrente sanguínea. (Mas, reconsideremos o sentido de afeto, antes que alguma mente incauta e açodada possa imaginar que os há apenas de um tipo. Lembremos que as relações são estabelecidas com base nos afetos existentes entre um lado e outro do processo de conhecer. Ser cognoscente e objeto afetam-se, mutuamente. E isso vale para as idéias e os mortais que as recolhem; as pesquisas científicas e os cientistas; as teses e seus autores; os livros, os escritores e leitores; uma máquina de costura e o alfaiate; as cinzas do cachimbo e sua última baforada suspensa no ar, enquanto o fumante passeia o seu olhar pelo fumo no espaço. Tudo isso é afeto. E também tudo o mais.) De repente, esses restos esquecidos, realizando o seu périplo sanguíneo, aportam no SNC e este remete ao corpo e à mente todas as suas impressões correlacionadas às imagens do pretérito, que ora voltam a sacudir as tumbas mal dissimuladas do cemitério da memória. Num balé psicodélico, os mortos voltam.

É nesse anfiteatro que se forma que revejo meus mortos e as roupas que lhes vesti. As coroas florais que lhes dei. Os epitáfios que redigi em sua honra, ou desonra. Muitos textos rasgados, cujo sangue do próprio anonimato repousam nas palmas das minhas mãos indolentes. Muitos perdões que não cheguei a pedir. Muitos títulos que não conquistei porque não quis. Muitos zumbis a rosnar os diversos nomes que revesti, vida afora. Muitos livros que não li. (Como pude criar tudo isso?!?)

Há algumas gravatas que posso arrumar, como a que ajeito no cadáver que tropeça na calçada e me olha, fundamente. Há livros que posso publicar. Os meio-fios da calçada distante de minha infância, em que sentava para observar os transeuntes, eu os posso pintar. O cabelo loiro de minha namoradinha de seis anos a solicitar os meus dedos de mesma idade, que tornam a acariciá-los. Os contos de minha puberdade, natimortos em 1983. A nota vermelha no caderno de Matemática banhada com minhas lágrimas vaidosas e assustadas, na terceira série. A minha imagem bonita no espelho e eternamente feia nas fotos que detesto. Meus alunos que sempre irei amar. Aquele que orienta meus passos.


Às vezes resto. Às vezes descuido. Resto e descuido.