O menino matou a menina. Com a tranqüilidade de quem masca um chiclete e o cospe fora. Quando viu, já o tinha feito. Não queria que ela ocupasse lugar em sua sala de estar, por isso a mandou para o porão em que coleciona seus mortos. Ela é mais um. E ele está com o coração dilacerado. Mas, que importa? Pior é ter a confiança traída. Por isso, ele não sente remorso. Só raiva. Não suporta traidores. Não consegue conviver com eles. É um verdugo de coração duro e vazio.
Mais tarde, indo em direção ao sótão, socará até cair de cansaço o velho saco de areia em que se exercita depois de cada assassinato. Esmurrá-lo-á com toda a sua força, arrebentando as suas costuras de tanto bater. Esfolará seus dedos até sentir o sangue pintar o plástico do saco e o chão gelado embaixo dos seus pés. Depois, banhado em suor fétido e com o rosto em brasa, jogar-se-á à toa no chão, como um garoto desesperançado das vielas de Bagdá, chorando, em meio a mais uma e corriqueira explosão, como a querer estancar a própria vida, no concerto sem fim de sua desventura. O menino odeia ser ingênuo. E foi, mais uma vez. E isso ele não podia tolerar.
Já o posso ver, em seguida, todo comportado, cabelinhos úmidos do recém tomado banho tépido que relaxou seus músculos cansados, sentadinho na escada, de camisa listrada horizontalmente em azul e branco, meias brancas e sapatinhos pretos brilhantes, engraxados pelo pai zeloso. Nas mãos, um livreto inocente quanto inspirador: “Alice no País das Maravilhas”.
E nunca mais se viu o sorriso do Gato.
5 comentários:
A puerícia infantil é realmente impressionante.
Belo texto.
Isso é real ou literatura? O que é literatura? O que é jornalismo?
Anda vendo muitas séries policiais como eu? Rs...
Beijocas!
Olá, Ricardo.
Gostei do texto. Provoca reflexões e alusões a muitos atos do cotidiano.
Totalmente inspirador e simplesmente perfeito!
Leslie
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