domingo, novembro 25, 2007

Shadows

Quando o Sol dobrou a esquina dos seus últimos lustros, ele compreendeu, de pronto, o ter que enfrentar a criatura que jazia atrás da porta, havia anos. Sempre cedeu-lhe os espaços das vielas e becos sujos das consciências enlameadas pela culpa. Mas nunca lhe cedeu um momento, ínfimo que fosse, de publicidade verdadeira. Os atos sórdidos eram encobertos pelo verniz mais vagabundo que as mãos toscas de um carpinteiro desleixado poderiam utilizar. Não era um bom hipócrita, não sabia fingir habilmente. Mesmo assim, fingia.
Pela manhã, sombra à espreita, abria o seu baú de máscaras, escolhia a mais adequada à ocasião e tomava o rumo da escada. Não gostava dos elevadores, refertos de "toda aquela gente falsa!" Odiava a sociedade e todo o seu ritual iconólatra, sempre erigindo estátuas a defuntos podres e imorais, convertidos em santos pulcros e castos, graças à eloqüência das pedras e à inércia dos justos. E sorria.
Sorria dissimuladamente para tudo e todos. Era simpático com as crianças, atencioso com os velhos, educado com os negros, afável com as minorias de todos os matizes. Generoso, por fim, e sempre. Mas tinha a marca da impostura na testa. Qualquer sujeito com meia banda de cérebro dentro da cabine cefálica percebia laivos de ódio em seu sorriso fingido. Por isso, não tinha amigos. Nenhum. A não ser a própria sombra que arrastava, vida a fora, mercê da liberdade que ela mesma jamais lhe concederia. Estavam imantados um ao outro, inapelavelmente.
À noite, sentia, pelas vias misteriosas da simbiose, a necessidade de levá-la às fossas mais torpes, a fim de vê-la lambuzar-se nos acepipes putrefatos engendrados pela miséria humana mais perversa. Como gêmeos siameses, deleitavam-se ambos prazerosamente nos banquetes que lhes sobreexcitavam as vísceras psíquicas, num conúbio capaz de causar asco ao mais frio e egoísta coveiro saído da mente perturbada de um Henry Kutner. Depois, ao mirar o resultado de tudo, o mundo lhe caía às costas, soterrando-o sob toneladas de auto-insultos, de ego-lacerações. Juntava as mãos penitentes, genufletia-se como uma cadela beatífica e chorava o choro dos fariseus.
Foi assim, durante evos, até a Dama Sinistra lhe vir ao encalço. Era chegada a hora de encarar o monturo vivo que representava todo o mofo que ele um dia, desditosamente, pensou ser possível cobrir com a cal da repressão. Caíram-lhe ao solo as personas, como escaras que revelam pústulas mal curadas, deixando à mostra a maior e mais inaceitável delas: seu rosto. Estendeu as mãos à sombra por primeira vez e convidou-a, num gesto mudo, a sentar-se com ele, vis-á-vis, ao centro da sala e do mundo.


Nada mais revelador da alma humana, que a nudez provocada pela Morte.

domingo, novembro 18, 2007

Vidraças

O menino aprendeu com a menina a importância de capitanear a própria vida. “O que é prioridade para mim não deixo nas mãos de ninguém”, ela disse. E ele entendeu. O menino priorizou então limpar vidraças. Não só por elas, mas pelo trabalho de limpá-las. E pela necessidade de permitir a entrada da luz desobstruída em seu escritório. Assim pode saber se é, de fato, tão bom vidracista quanto dizem. Assim pode melhor divisar o layout do seu bureau, com todo o equipamento e arquivos disponíveis – inclusive alguns dos quais ele nem lembra mais e precisa reencontrar - e planejar-lhe a ergonomia.
Encheu-se de disposição e começou a trabalhar. Sua mesa está cheia de projetos e bem iluminada, diga-se. Ele não pretende mais deixar suas vidraças opacas. Decidiu limpá-las, todos os dias. Não só por elas, mas pelo trabalho de limpá-las. E pela necessidade de permitir a entrada da luz desobstruída em seu escritório. “O que é prioridade para mim não deixo nas mãos de ninguém”, ele pensa.

Vidraças fatigadas?...

... Nunca mais!

quinta-feira, novembro 15, 2007

O Suor do Teu Rosto


Não existe maneira mais fácil de se decretar a morte de um blog do que deixar de atualizá-lo com freqüência. Afinal de contas, essa é a função de um diário: comportar os registros cotidianos do seu dono. Deixá-lo em branco é decretar a sua inutilidade, perda de identidade e morte (na mais completa indigência). No entanto, como o Teorias Umbilicais costuma relatar o dia-a-dia do seu autor de maneira sempre, ou quase sempre, metafórica, a multidão de dois ou três leitores não consegue ficar a par de determinados detalhes pessoais da criatura-criadora, que se refletem, por exemplo, nessa falta de assiduidade. A procrastinação é um deles.
Aqui ou ali, em um post ou noutro, ilustrei a ilustre companheira, direta ou indiretamente, procurando refletir sobre a raiz de tal comportamento. Inclusive, este blog surgiu com o intuito de me permitir dar vazão à minha intimidade, permitindo-me escoar emoções, sentimentos e pensamentos. É uma biblioteca sobre a minha consciência, ainda oclusa, conforme o próprio escrito em seu pórtico revela: "Minhas teorias sobre o mundo circundante visto pela minha janela embaçada". E o porquê da procrastinação há muito faz parte de minhas reflexões. Assim foi, até há alguns meses.
Percebi, finalmente, e graças a uma conversa elucidativa com meu amigo Artur (leiam o Grimorium, constante na minha lista de blogs - é ótimo!), ser mais importante descobrir como consolidei esse comportamento do que qual a razão que engendrou a procrastinação. Além da conversa, esclarecedora sobre o meu jeito esquizóide de ser (pelo menos quanto à procrastinação), algumas ilações acerca do Racionalismo, de Descartes, e do Empirismo britânico, de Jonh Locke, David Hume, Thomas Hobbes e outros, apresentando duas versões distintas sobre como o ser cognoscente aproxima-se do objeto do conhecimento, se pelo pensamento ou pela experiência, mostraram-me a necessidade de agir. Todavia, não só pensando nem só experimentando, mas estabelecendo uma relação dinâmica com as coisas, pondo-me a caminhar e querer provar os sabores e os saberes da vida! Percebi que a compreensão me virá pelo exercício, pelo fazer, pelo agir (arte e práxis, conforme o pensamento aristotélico).
Então, mesmo com as irritações características que meu corpo experimenta quando tenho de realizar qualquer trabalho intelectual - considerando o uso da palavra no nível modesto que me cabe -, vou partir para o trabalho. Minhas pernas ainda se agitarão, meus músculos ficarão tensos, algumas vezes chorarei (como já aconteceu várias vezes), mas não vou me privar do prazer de produzir (para desespero de meus detratores, que não possuo, dada a minha desimportância).
Desse remédio chamado Teorias Umbilicais tomarei doses cada vez maiores. Serão drágeas e mais drágeas de trabalho, alegria, paixão e amor! Amor pelo humilde ofício de escrever. De escrever por gostar.

terça-feira, novembro 06, 2007

Gavetas¹



Toda noite, cerrando os olhos, ela mergulha na intimidade do quarto, à cata de algo perdido numa de suas infinitas gavetas. Lembranças como meias surradas que palmilharam caminhos sinuosos. Teoremas, idéias, lembranças, algum sopro esquivo da juventude deixada para trás, há poucos metros. Está tudo lá.
Tateia no escuro e procura, lenta e obsessivamente, pedaços de si mesma espalhados pelos cantos. Há muitas gavetas, porém. Uma infinidade de cubículos em que se amontoam afetos, vestidos e roupas íntimas que ela só usa ali, no seu quarto. O mesmo em que se despe. Em que se sente só.
Num simples movimento, uma gaveta remete à outra, abrindo miríades de possibilidades, saborosas ou não – mas nem sempre. A desordem e a poeira dos móveis em seus olhos fazem pensar que nada têm em comum umas com as outras. Não parecem ser do mesmo guarda-roupa, do mesmo arquivo, sequer do mesmo quarto. Por vezes, uma gaveta emperra e ela a puxa com toda a força, esmurra-a, chuta-a, até desfalecer, os braços inchados. Encostada num canto do quarto vê a torrente de suor que lhe desce à face, ardendo as fibras mais íntimas.
Mesmo assim, na ardência da dor e da alegria, quase insanamente, a menina ri. E, convertida em alegria, dentro de si mesma, tudo segue como num parque de diversões: crianças, bexigas, palhaços, poemas lidos atrás da roda-gigante – onde há quietude e segurança – e na vertigem da montanha-russa. Dobrando a esquina da memória, ei-la diante do futuro: um homem, seu realejo e seu pássaro da fortuna (ou da desdita). “Eu não acredito nisso”, ela pensa. “Não tem lógica.”
- O que não tem lógica, senhorita?
- Prever o futuro no bico de uma ave idiota.
- Tem toda razão.
- ?
- No bico de um pássaro idiota é mesmo impossível prevê-lo.
- ??
- Mas o velho Lewis Carroll não é uma ave qualquer.
- Eu penso que isso não dará certo.
- Por quê?
- Não há como “arrumar” isso aqui dentro – respondeu, cutucando a cabeça com o indicador direito.
- “Penso, logo existo”, não é?
- É!
- Hum...! (Não afirme isso tão enfaticamente, cochichou. O velho Lewis não gosta muito do “Francês”.)
- ...
- Vamos! Aceite a proposta do velho Lewis! O que tem a perder? Peça!
Ela então pede ao cavalheiro solicitar ao seu pássaro, uma arara vetusta e vistosa, que lhe mostre a sorte do dia. A ave inclina a cabeça para o lado esquerdo, pisca o olho num cumprimento maroto, abre a gaveta mágica, e pinça o bilhete fatal: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.”

Saindo como de um sonho, recuperada do torpor, olhou em volta e, sem armários, arquivos, gavetas, tudo parecia integrado: lembranças, teoremas, relógios, afetos, equações, vestidos. Repetiu, intimamente: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.” E dormiu o sono dos anjos.


Obs.¹: Texto dedicado a uma grande amiga, neste seu aniversário.