Quando o Sol dobrou a esquina dos seus últimos lustros, ele compreendeu, de pronto, o ter que enfrentar a criatura que jazia atrás da porta, havia anos. Sempre cedeu-lhe os espaços das vielas e becos sujos das consciências enlameadas pela culpa. Mas nunca lhe cedeu um momento, ínfimo que fosse, de publicidade verdadeira. Os atos sórdidos eram encobertos pelo verniz mais vagabundo que as mãos toscas de um carpinteiro desleixado poderiam utilizar. Não era um bom hipócrita, não sabia fingir habilmente. Mesmo assim, fingia.
Pela manhã, sombra à espreita, abria o seu baú de máscaras, escolhia a mais adequada à ocasião e tomava o rumo da escada. Não gostava dos elevadores, refertos de "toda aquela gente falsa!" Odiava a sociedade e todo o seu ritual iconólatra, sempre erigindo estátuas a defuntos podres e imorais, convertidos em santos pulcros e castos, graças à eloqüência das pedras e à inércia dos justos. E sorria.
Sorria dissimuladamente para tudo e todos. Era simpático com as crianças, atencioso com os velhos, educado com os negros, afável com as minorias de todos os matizes. Generoso, por fim, e sempre. Mas tinha a marca da impostura na testa. Qualquer sujeito com meia banda de cérebro dentro da cabine cefálica percebia laivos de ódio em seu sorriso fingido. Por isso, não tinha amigos. Nenhum. A não ser a própria sombra que arrastava, vida a fora, mercê da liberdade que ela mesma jamais lhe concederia. Estavam imantados um ao outro, inapelavelmente.
À noite, sentia, pelas vias misteriosas da simbiose, a necessidade de levá-la às fossas mais torpes, a fim de vê-la lambuzar-se nos acepipes putrefatos engendrados pela miséria humana mais perversa. Como gêmeos siameses, deleitavam-se ambos prazerosamente nos banquetes que lhes sobreexcitavam as vísceras psíquicas, num conúbio capaz de causar asco ao mais frio e egoísta coveiro saído da mente perturbada de um Henry Kutner. Depois, ao mirar o resultado de tudo, o mundo lhe caía às costas, soterrando-o sob toneladas de auto-insultos, de ego-lacerações. Juntava as mãos penitentes, genufletia-se como uma cadela beatífica e chorava o choro dos fariseus.
Foi assim, durante evos, até a Dama Sinistra lhe vir ao encalço. Era chegada a hora de encarar o monturo vivo que representava todo o mofo que ele um dia, desditosamente, pensou ser possível cobrir com a cal da repressão. Caíram-lhe ao solo as personas, como escaras que revelam pústulas mal curadas, deixando à mostra a maior e mais inaceitável delas: seu rosto. Estendeu as mãos à sombra por primeira vez e convidou-a, num gesto mudo, a sentar-se com ele, vis-á-vis, ao centro da sala e do mundo.
Pela manhã, sombra à espreita, abria o seu baú de máscaras, escolhia a mais adequada à ocasião e tomava o rumo da escada. Não gostava dos elevadores, refertos de "toda aquela gente falsa!" Odiava a sociedade e todo o seu ritual iconólatra, sempre erigindo estátuas a defuntos podres e imorais, convertidos em santos pulcros e castos, graças à eloqüência das pedras e à inércia dos justos. E sorria.
Sorria dissimuladamente para tudo e todos. Era simpático com as crianças, atencioso com os velhos, educado com os negros, afável com as minorias de todos os matizes. Generoso, por fim, e sempre. Mas tinha a marca da impostura na testa. Qualquer sujeito com meia banda de cérebro dentro da cabine cefálica percebia laivos de ódio em seu sorriso fingido. Por isso, não tinha amigos. Nenhum. A não ser a própria sombra que arrastava, vida a fora, mercê da liberdade que ela mesma jamais lhe concederia. Estavam imantados um ao outro, inapelavelmente.
À noite, sentia, pelas vias misteriosas da simbiose, a necessidade de levá-la às fossas mais torpes, a fim de vê-la lambuzar-se nos acepipes putrefatos engendrados pela miséria humana mais perversa. Como gêmeos siameses, deleitavam-se ambos prazerosamente nos banquetes que lhes sobreexcitavam as vísceras psíquicas, num conúbio capaz de causar asco ao mais frio e egoísta coveiro saído da mente perturbada de um Henry Kutner. Depois, ao mirar o resultado de tudo, o mundo lhe caía às costas, soterrando-o sob toneladas de auto-insultos, de ego-lacerações. Juntava as mãos penitentes, genufletia-se como uma cadela beatífica e chorava o choro dos fariseus.
Foi assim, durante evos, até a Dama Sinistra lhe vir ao encalço. Era chegada a hora de encarar o monturo vivo que representava todo o mofo que ele um dia, desditosamente, pensou ser possível cobrir com a cal da repressão. Caíram-lhe ao solo as personas, como escaras que revelam pústulas mal curadas, deixando à mostra a maior e mais inaceitável delas: seu rosto. Estendeu as mãos à sombra por primeira vez e convidou-a, num gesto mudo, a sentar-se com ele, vis-á-vis, ao centro da sala e do mundo.
Nada mais revelador da alma humana, que a nudez provocada pela Morte.