Toda noite, cerrando os olhos, ela mergulha na intimidade do quarto, à cata de algo perdido numa de suas infinitas gavetas. Lembranças como meias surradas que palmilharam caminhos sinuosos. Teoremas, idéias, lembranças, algum sopro esquivo da juventude deixada para trás, há poucos metros. Está tudo lá.
Tateia no escuro e procura, lenta e obsessivamente, pedaços de si mesma espalhados pelos cantos. Há muitas gavetas, porém. Uma infinidade de cubículos em que se amontoam afetos, vestidos e roupas íntimas que ela só usa ali, no seu quarto. O mesmo em que se despe. Em que se sente só.
Num simples movimento, uma gaveta remete à outra, abrindo miríades de possibilidades, saborosas ou não – mas nem sempre. A desordem e a poeira dos móveis em seus olhos fazem pensar que nada têm em comum umas com as outras. Não parecem ser do mesmo guarda-roupa, do mesmo arquivo, sequer do mesmo quarto. Por vezes, uma gaveta emperra e ela a puxa com toda a força, esmurra-a, chuta-a, até desfalecer, os braços inchados. Encostada num canto do quarto vê a torrente de suor que lhe desce à face, ardendo as fibras mais íntimas.
Mesmo assim, na ardência da dor e da alegria, quase insanamente, a menina ri. E, convertida em alegria, dentro de si mesma, tudo segue como num parque de diversões: crianças, bexigas, palhaços, poemas lidos atrás da roda-gigante – onde há quietude e segurança – e na vertigem da montanha-russa. Dobrando a esquina da memória, ei-la diante do futuro: um homem, seu realejo e seu pássaro da fortuna (ou da desdita). “Eu não acredito nisso”, ela pensa. “Não tem lógica.”
- O que não tem lógica, senhorita?
- Prever o futuro no bico de uma ave idiota.
- Tem toda razão.
- ?
- No bico de um pássaro idiota é mesmo impossível prevê-lo.
- ??
- Mas o velho Lewis Carroll não é uma ave qualquer.
- Eu penso que isso não dará certo.
- Por quê?
- Não há como “arrumar” isso aqui dentro – respondeu, cutucando a cabeça com o indicador direito.
- “Penso, logo existo”, não é?
- É!
- Hum...! (Não afirme isso tão enfaticamente, cochichou. O velho Lewis não gosta muito do “Francês”.)
- ...
- Vamos! Aceite a proposta do velho Lewis! O que tem a perder? Peça!
Ela então pede ao cavalheiro solicitar ao seu pássaro, uma arara vetusta e vistosa, que lhe mostre a sorte do dia. A ave inclina a cabeça para o lado esquerdo, pisca o olho num cumprimento maroto, abre a gaveta mágica, e pinça o bilhete fatal: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.”
Saindo como de um sonho, recuperada do torpor, olhou em volta e, sem armários, arquivos, gavetas, tudo parecia integrado: lembranças, teoremas, relógios, afetos, equações, vestidos. Repetiu, intimamente: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.” E dormiu o sono dos anjos.
Obs.¹: Texto dedicado a uma grande amiga, neste seu aniversário.
Tateia no escuro e procura, lenta e obsessivamente, pedaços de si mesma espalhados pelos cantos. Há muitas gavetas, porém. Uma infinidade de cubículos em que se amontoam afetos, vestidos e roupas íntimas que ela só usa ali, no seu quarto. O mesmo em que se despe. Em que se sente só.
Num simples movimento, uma gaveta remete à outra, abrindo miríades de possibilidades, saborosas ou não – mas nem sempre. A desordem e a poeira dos móveis em seus olhos fazem pensar que nada têm em comum umas com as outras. Não parecem ser do mesmo guarda-roupa, do mesmo arquivo, sequer do mesmo quarto. Por vezes, uma gaveta emperra e ela a puxa com toda a força, esmurra-a, chuta-a, até desfalecer, os braços inchados. Encostada num canto do quarto vê a torrente de suor que lhe desce à face, ardendo as fibras mais íntimas.
Mesmo assim, na ardência da dor e da alegria, quase insanamente, a menina ri. E, convertida em alegria, dentro de si mesma, tudo segue como num parque de diversões: crianças, bexigas, palhaços, poemas lidos atrás da roda-gigante – onde há quietude e segurança – e na vertigem da montanha-russa. Dobrando a esquina da memória, ei-la diante do futuro: um homem, seu realejo e seu pássaro da fortuna (ou da desdita). “Eu não acredito nisso”, ela pensa. “Não tem lógica.”
- O que não tem lógica, senhorita?
- Prever o futuro no bico de uma ave idiota.
- Tem toda razão.
- ?
- No bico de um pássaro idiota é mesmo impossível prevê-lo.
- ??
- Mas o velho Lewis Carroll não é uma ave qualquer.
- Eu penso que isso não dará certo.
- Por quê?
- Não há como “arrumar” isso aqui dentro – respondeu, cutucando a cabeça com o indicador direito.
- “Penso, logo existo”, não é?
- É!
- Hum...! (Não afirme isso tão enfaticamente, cochichou. O velho Lewis não gosta muito do “Francês”.)
- ...
- Vamos! Aceite a proposta do velho Lewis! O que tem a perder? Peça!
Ela então pede ao cavalheiro solicitar ao seu pássaro, uma arara vetusta e vistosa, que lhe mostre a sorte do dia. A ave inclina a cabeça para o lado esquerdo, pisca o olho num cumprimento maroto, abre a gaveta mágica, e pinça o bilhete fatal: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.”
Saindo como de um sonho, recuperada do torpor, olhou em volta e, sem armários, arquivos, gavetas, tudo parecia integrado: lembranças, teoremas, relógios, afetos, equações, vestidos. Repetiu, intimamente: “Pensar e sentir, viver ou sonhar, tudo é uma questão de enxergar.” E dormiu o sono dos anjos.
Obs.¹: Texto dedicado a uma grande amiga, neste seu aniversário.
Um comentário:
Belíssimo o texto... Uau...
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